quarta-feira, 9 de março de 2011

Dois tecelões

Dois dias em casa do João Lemos a trabalhar n'A MALA INVENTADA e passa-me pela cabeça não voltar a escrever nada que não seja ilustrado. Pode ser banda-desenhada, ou picture books para crianças, ou até para adultos, desde que exista imagem a acompanhar o texto, desde que texto e imagem se fundam e complementem e desapareçam um no outro para criar algo novo, que não estava lá antes.

Quem vive à minha volta sabe que não tenho um pensamento visual. Estou habituado a pensar através das palavras, que não são mais do que símbolos e, como tal, possibilitam as mais variadas interpretações. Gosto muito de acreditar que o mundo na minha cabeça é diferente do mundo de todas as outras pessoas no mundo. As imagens são menos ambíguas do que as palavras, claro, mas não sei se será por isso que me falta um pensamento visual. Talvez a explicação seja mais simples do que isso, talvez seja apenas porque sou daltónico (ainda que num grau pouco significativo) e para mim as cores nunca tiveram uma importância extradordinária.

Seja como for, há uma consequência prática disto, que eu encaro como uma bênção: sempre que termino de escrever um livro para crianças, para lá das palavras que usei (com as suas múltiplas interpretações) não tenho qualquer imagem formada sobre a proporção entre o nariz e a boca das personagens, sobre os quadros que estão pendurados nas paredes da casa do protagonista, sobre o tom de cinzento do céu, etc. Dito de outra forma: não tenho qualquer expectativa em relação àquilo que o ilustrador fará com o texto que lhe entregar. Gosto de conversar com o ilustrador, contar-lhe a origem das ideias, falar-lhe sobre a força que algumas dessas ideias fazem dentro de mim, mas pouco mais do que isso. Depois o ilustrador vai fazer o seu trabalho, se quiser, estou sempre disponível para conversar, tirar dúvidas, dar sugestões, mas não faço questão de o fazer.

Foi isso que aconteceu com o João Lemos. Há uns meses, depois de algumas conversas, o João enviou-me a primeira ilustração, queria saber a minha opinião, queria saber se era aquela imagem que eu tinha na cabeça para o início da história. Não era. Eu não tinha nenhuma imagem, eu só tinha palavras. Ver aquela ilustração pela primeira vez: uma sensação estranha mas maravilhosa, como chegar a um lugar onde nunca estive mas que reconheço perfeitamente, encanto e conforto. Eu disse ao João a minha opinião. Ele voltou ao trabalho. Uns meses depois, enviou-me as 64 ilustrações seguintes. Sim, um trabalho épico. Uma espécie de banda-desenhada, em que casa quadradinho é uma página.

Depois, sentei-me ao lado do João e começámos a entrelaçar as minhas palavras com as imagens dele. Em algumas páginas a teia é leve, noutras, fizemos por atar nós apertados nas pontas e não é possível perceber onde a ilustração começa e o texte termina, é tudo uma só coisa. Não sei como se chama essa coisa. Talvez "ilustrexto" ou "textração". No fundo é apenas um livro. Estivemos assim dois dias, o trabalho de tecelagem não está pronto mas aproxima-se do fim. Depois o livro seguirá para a editora para ser montado e encaixado nas suas medidas exactas. Depois irá para a gráfica, haverá provas de cor para analisar, tons para equilibrar, etc.

Depois o livro deixa de ser um conceito abstracto.

Não falta muito. É coisa de semanas.

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