segunda-feira, 4 de abril de 2011

Da Madeira

(Não sei o que se passou com o post que escrevi no sábado: desapareceu nas engrenagens bem oleadas do intitulado ciberespaço. De modo que aqui se repete.)



No sábado, por volta das 6.00, na 3ª mesa do Festival Literário da Madeira, quando chegou a minha vez de falar sobre Escritores Inconstantes, li o seguinte texto, com todas as suas palavras e virgulas.



Eu tinha uma ideia e não sabia o que fazer com ela. Acontece-me com alguma frequência. Era a história de um assassino em série que acrescentava à sua psicopatia a obsessão de matar alguém uma vez por mês, sempre à primeira hora do primeiro dia de cada mês. Não era tanto uma história, mas a premissa para uma história à qual eu não sabia dar continuidade, sobretudo porque não leio tantos policiais como deveria. De modo que eu tinha uma ideia mas faltava-lhe qualquer coisa.


Depois, um dia, o escritor João Tordo disse-me: «Vamos escrever um livro os dois.» Possivelmente estava bêbado, de outra forma não o teria dito. Eu disse: «Está bem.» Ele perguntou: «Tens alguma ideia?» Assim, sem mais nem menos, como se na vida real um escritor contasse as suas ideias a outro escritor. Ainda assim, lembrei-me imediatamente do assassino obstinado com os seus assassinatos mensais. Tive a certeza de que o escritor João Tordo saberia o que fazer com essa ideia e, talvez por isso mesmo, continuei calado. Ele ficou à espera, rangeu os dentes duas ou três vezes e eu comecei a contar a minha ideia. O João Tordo ouviu-me em silêncio e depois continuou em silêncio durante muito tempo. Por fim, deu dois goles no copo que tinha à frente e riu-se muito alto. Disse: «Essa ideia é boa, mas falta-lhe qualquer coisa.» Porque, mesmo às três da manhã, o escritor João Tordo é muito perspicaz. Eu disse: «João Tordo, se sabes fazer melhor dispara.» Ele bebeu o que restava no copo, devagar, para ganhar tempo. Eu rangi os dentes, mas isso não teve qualquer efeito no escritor João Tordo, porque eu não sei ranger os dentes como ele. Quando o silêncio começava a encher demasiado o espaço entre nós, ele disse: «E se, num mês qualquer, por exemplo, Abril, por alguma razão, esse assassino se visse impedido de matar a sua vítima no primeiro dia do mês? E se, por força de circunstâncias que ainda desconhecemos, ele se visse obrigado a adiar o crime para o dia 2 de Abril? E se esse pequeno abalo na ordem da sua vida o levasse a questionar tudo, até mesmo a sua natureza de assassino?» Ele ia continuar a falar mas eu interrompi-o e apenas disse: «Vamos escrever esse livro os dois.» Por essa altura eu também já estava bêbado, claro. Alinhámos ali mesmo o plano de trabalho. Eu escreveria o capítulo inicial e a partir daí escreveríamos capítulos alternadamente, sem qualquer obrigação de decidirmos em conjunto os avanços da narrativa a não ser em questões de fundo. Brindámos. Os nossos copos chocaram, o meu escorregou-me da mão e partiu-se no chão.


Três dias depois o João Tordo ligou-me. Disse: «Falei com um editor sobre o nosso livro. Aliás, sobre os nossos livros. Ele quer publicar uma série sobre o nosso metódico assassino.» A ideia do editor era publicar um livro por mês, sempre no primeiro dia de cada mês, durante um ano. Doze narrativas sobre doze mortes. No quarto livro, o nosso assassino sofreria o seu desaire e apenas conseguiria matar no dia 2 desse mês e esse livro seria publicado também no dia 2. Eu gostei logo da ideia, porque gosto de encontrar lógica numérica no que quer que seja. O João Tordo acrescentou: «As histórias têm de ser curtas.» Eu senti-me levitar e disse: «120 páginas. Exactamente 120 páginas cada.» O João Tordo ia dizer qualquer coisa, mas eu continuei: «Doze capítulos por livro. Dez páginas por capítulo. Exactamente dez páginas por capítulo.» O João Tordo balbuciou: «Está bem. O editor quer publicar o primeiro livro daqui a três meses. Envia-me o primeiro capítulo ainda hoje.»


Uma semana mais tarde, ele ligou-me. Queria saber porque razão ainda não lhe tinha enviado o primeiro capítulo. Eu perdi-me num labirinto de rodeios. Depois ouvi o escritor João Tordo ranger os dentes do outro lado da ligação e não encontrei outra solução a não ser contar-lhe sobre o meu problema crónico com os primeiros capítulos. A verdade é que, em todos os romances que escrevo, acabo sempre a gastar tantas páginas em versões sucessivas do primeiro capítulo como com o resto do livro. Ele só disse: «Esquece. Eu escrevo o primeiro capítulo. Ou então o livro não está pronto este ano.»


No dia seguinte recebi um e-mail com o primeiro capítulo. Pareceu-me um bom primeiro capítulo, mas havia um problema evidente. Liguei ao João Tordo. Disse-lhe: «Este não é o teu estilo.» «E depois?», perguntou ele. «E depois as pessoas estão habituadas ao teu estilo e agora, de repente, afastas-te das tuas palavras.» O João Tordo soprou: «David Machado, as pessoas também estão habituadas a ver-te sem óculos e, no entanto, olha para ti neste momento, a ler este texto, à frente destas pessoas.» Ele não estava a fazer qualquer sentido. Eu repeti: «Mas é o teu estilo.» E então, nesse momento, o escritor João Tordo blasfemou: «Que se lixe o estilo.» A conversa ficou por ali, claro.


Nas semanas seguintes encontrámos um ritmo certo para o trabalho, a uma média de três capítulos por semana: eu escrevia um capítulo em três dias, depois o escritor João Tordo escrevia um capítulo num dia e por fim eu escrevia um capítulo em dois dias, ao sétimo dia descansávamos.


Quando chegámos ao fim do livro, fomos ler o que tínhamos escrito. À primeira leitura, percebi imediatamente o problema com os capítulos que eu tinha escrito. O escritor João Tordo também percebeu. Disse-me: «Os capítulos 2, 6 e 8 são bons. Mas os capítulos 4 e 10 são uma ameaça ao bom nome da literatura.» Eu expliquei-lhe que nos dias em que escrevera os capítulos 4 e 10 não tinha comprado o jornal e que, por isso mesmo, não tinha sudokus em casa. O João Tordo disse: «O quê» Eu respondi: «Toda a gente sabe da minha necessidade de fazer um sudoku matinal antes de começar a trabalhar. As palavras saem-me com outro ímpeto.» Ele revirou os olhos e eu vi a paciência a escapar-lhe pelas córneas.


As revisões levaram-nos quase duas semanas. No final, feitas as contas, demorámos mais um mês do que o previsto para escrever aquele primeiro livro. Eu disse: «Não vamos conseguir publicar um livro por mês.» O João Tordo pensou uns segundos e depois sugeriu: «Podíamos publicar de dois em dois meses. Eu disse: «Nesse caso, o assassino da nossa história terá de matar alguém de dois em dois meses.» O João Tordo deitou as mãos à cabeça e depois de meio segundo de ponderação disse: «Esquece. É melhor não escrevermos um livro juntos.»


Há três dias liguei ao João Tordo. Disse-lhe: «Escrevi um texto sobre o livro que escrevemos juntos.» Ele respondeu: «Nós não escrevemos nenhum livro juntos.» «Eu sei», disse eu. «Mas tinha de escrever um texto sobre escritores inconstantes para apresentar no Funchal e foi o que me veio à cabeça.» Ele pediu-me que lesse o texto, este texto, e eu li. Ele só disse: «Vou pensar no assunto.»


Ontem à noite, ele ligou-me. Deu-me autorização para ler o texto em público. Antes de desligar acrescentou: «Tenho estado a pensar nessa história do assassino que mata no primeiro dia de cada mês. Talvez pudéssemos mesmo escrever esse livro os dois.» Eu deitei as mãos à cabeça e depois meio segundo de ponderação respondi: «Esquece. Não é boa ideia.»


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