quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Os cometas

Na Primavera de 2003 eu trabalhava no Instituto Nacional de Estatística, saía quase todas as noites depois do jantar para estar com amigos e lia livros nas horas que sobravam. Não era suficiente, mas era bom. Raramente escrevia. Sempre acreditei que não é possível escrever livros sem tempo, dias, meses. Não seria justo para mim, nem para as palavras, nem para quem as lesse, embora na Primavera de 2003 eu não pensasse que alguém iria ler as minhas palavras. Depois um dia li num livro do Bukowski o Henry Chinasky dizer que queria ser escritor para poder acordar tarde todas as manhãs e eu pensei: sim, é boa ideia. E o meu pensamento continuou: não só poderia acordar tarde todas as manhãs como talvez escrever fosse suficiente. Havia muita força nesse estranho pensamento. Porém, ainda assim, existe uma questão importante, que eu prefiro deixar sem resposta, porque não vale a pena colocar hipóteses sobre o passado: na Primavera de 2003 o meu contrato de trabalho chegou ao seu ponto final mas, se isso não tivesse acontecido, será que eu teria encontrado a determinação para me afastar sozinho?

Durante duas semanas fui para a praia todos os dias. Depois o tempo dilatou-se. O tempo era longo e doía. Por isso deixei de ir à praia e comecei a escrever. Escrevi dez horas por dia durante três meses. No fim tinha um romance com 350 páginas, um mau romance, talvez o livro mais importante que escrevi até hoje, por tudo o que aprendi.

Depois escrevi outro romance, melhor do que o primeiro, mas também mau.

Depois escrevi contos, muitos contos, às vezes escrevia um conto por dia, ou melhor, às vezes escrevia um mau conto por dia.

Eu ainda queria ser como o Henry Chinasky mas acordava cedo todas as manhãs. Lia. Escrevia. Quase não saía de casa. Pensei que um dia talvez pudesse publicar livros, ganhar dinheiro com as palavras, viver a escrever dez horas por dia, sem sair de casa, até ao fim. Não sei porquê, mas eu pensava que os escritores não saíam de casa, que escreviam um livro, enviavam-no para a editora e, ao mesmo tempo que começavam a escrever o próximo, recebiam os direitos de autor. Eu achava que era uma sorte para um escritor ver outras pessoas. Eu achava que um escritor ver outro escritor era um fenómeno raro que devia ser estudado por cientistas, como se os escritores fossem planetas.

Depois o tempo passou, dias, meses, até anos. Acordei cedo todas as manhãs. Por vezes deitei-me tarde. Fiz o meu trabalho. Era bom e era suficiente. Estive milhares de horas sozinho, fechado em casa, havia muito silêncio, mas também passei muito tempo com pessoas, na rua, em festas, no metropolitano, na internet, no supermercado, e percebi que sem estar com essas pessoas escrever não teria o mesmo significado.

E estava errado, claro: os escritores não são planetas, são cometas, de vez em quando cruzam-se e avistam-se, chegam a parar para apertar as mãos, conversam, riem juntos, por vezes falam de livros, embora não dos seus, compreendem que não estão sozinhos naquilo que fazem sozinhos.

Amanhã sigo para a Póvoa do Varzim, para as Correntes d'Escritas, uma espécie de chuva de cometas.

Eu estava tão errado.

1 comentário:

  1. gostei (fala-se de Bukowski e eu venho logo a correr)

    e tb gostava de ir as correntes d'escritas, nunca fui e já ouvi falar bem do evento

    vou pesquisar

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